domingo, 11 de março de 2012

Sobre a sabedoria

- Mestre, diz-se por aí que o mundo não tem segredos para ti. Dizem que a tua sabedoria é tal que conheces todas as respostas...

Sei e conheço o segredo da felicidade.
Sei coisas que nem grandes filósofos ousariam imaginar.
Conheço segredos vedados aos psicólogos e aos sociólogos.
Conheço verdades que só Deus saberia dizer.


Onde muitos vêem horror e desespero, eu vejo perfeição.
Onde muitos vêem uma pedra, eu vejo genialidade.
Onde muitos vêem um gesto, eu vejo uma vida e uma história.


Conheço a resposta a todas as perguntas que sonharias perguntar.


Todavia, se os meus óculos se partirem e tiver de trocar as lentes, conhecerei coisas diferentes. Mas sempre verei a perfeição, a genialidade e a história.


- Não percebo, mestre.
Se percebesses também eu te chamaria mestre. O seguinte enigma ajudar-te-á a compreender:


"Dois amigos encontram-se numa galeria de arte onde estão expostas inúmeras pinturas. Mas ambos se fixam numa em particular, pela sua originalidade: uma tela completamente coberta de tinta verde.

Diz um amigo para o outro: 
- aposto contigo que consigo trazer aqui uma pessoa que diga que este quadro é vermelho.  E mais, vai dizê-lo com a convicção de quem está perfeitamente convencido que é verdade. Como é que isso é possível?"

sábado, 25 de fevereiro de 2012

A história dos 18

Vem cá e senta-te ao pé de mim. Na minha terra há uma história que é contada a todos jovens no dia que fazem 18 anos. E hoje gostaria de partilhá-la contigo.
- Mas mestre, já tenho mais de 18 anos!
Então não terás desculpa para demorares mais que 6 meses a compreendê-la. Nunca é contada antes porque como jamais alguém ouviu a história antes dos 18 anos, todos se recusam quebrar essa regra. E nunca é contada depois, porque não há nada que um jovem daquela terra deseje mais ardentemente para o seu 18º aniversário que ouvi-la. Por isso é chamada "A história dos 18"


"Numa noite de tempestade, numa estalagem à beira da estrada, encontraram-se 3 viajantes. Quem os visse diria que não se conheciam pois cada um se sentara a um canto da sala. E eram tão diferentes entre si quanto se é possível imaginar. O primeiro a chegar vestia um fato escuro, de corte elegante, luvas e usava uma bengala como acessório. Tinha um fino bigode aparado e muitas moedas de ouro no bolso. O segundo, era careca, gordo e desajeitado, parecia ter dormido vestido e tinha um tique nervoso, que o levava a olhar para o relógio duas a três vezes por minuto. O terceiro era um mistério. Nada trazia além de uma túnica branca que lhe cobria o corpo até aos pés. Tinha um rosto jovem, mas podia ser simplesmente impressão causada pelo permanente sorriso e olhar alienado.
Assim que o relógio começou a bater as 12 badaladas da meia-noite, levantaram-se os 3 ao mesmo tempo e rapidamente se juntaram ao redor de uma mesa. A conversa prolongou-se até à última badalada da meia noite. Então, do mesmo modo repentino com que se juntaram, cada um se dirigiu ao seu quarto e não se tornaram a ver. O estalajadeiro jurou pela alma da sua mãe que todos saíram a horas diferentes na manhã seguinte. E não fosse o caso de haver um empregado de balcão que confirmou todos os pontos e virgulas da história, ninguém o teria levado a sério dada a sua propensão para um copito ou dois a mais.
Após o falatório inicial, típico das pequenas terras onde um pequeno acontecimento é tema de conversa durante dias, o assunto caiu no esquecimento.
Meses depois, assolou àquela aldeia, uma tempestade ainda pior, e o estalajadeiro teve uma sensação de dejá-vu quando a porta se abriu e entrou um indivíduo com bigode, fato e bengala, seguido dos outros dois, continuando a agir como se não se conhecessem. Assim que o relógio começou a bater as 12 badaladas da meia-noite, o ritual repetiu-se. Ninguém conseguiu ouvir o que eles diziam, mas as suas expressões eram de intensa alegria e amizade. À última badalada, cada um voltou para o seu canto.
A notícia espalhou-se como um rastilho e, ao final da manhã, já toda a aldeia tinha tido conhecimento. Desta vez a febre durou algumas semanas. Foram feitas incontáveis conjecturas e teorias. Mas, de entre todos os disparates que se disseram, houve uma pergunta que sobressaiu: voltariam os estranhos na próxima tempestade?
Começou, então, um ritual estranho naquela aldeia. A estalagem passou a ter mais movimento quando chovia, a encher-se sempre que trovejava e a abarrotar se a trovoada fosse de noite. Mas na realidade passaram-se muitos meses até uma verdadeira tempestade prometer voltar a cruzar a meia-noite. E quando ela finalmente chegou, só faltaram ao encontro os doentes e acamados.
A algazarra foi épica durante o tempo que demorou a espera, e também era grande o queixume provocado pelo desconforto que costuma existir quando está gente a mais num espaço confinado. Ainda assim, apesar de antecedido por um grande frémito, houve um silêncio sepulcral quando pela porta entrou um cavalheiro de bengala.
Ninguém ficou desiludido naquela noite. Tal como lhes fora contado, o estranho ritual aconteceu diante dos seus olhos, e todos juraram nunca ter visto coisa assim...
Passado o frenesim do acontecimento, começou a surgir por toda a aldeia um certo mal estar por ninguém compreender o que se tinha passado. Pior ficaram quando se começaram a recriminar por ninguém se ter lembrado de falar com eles. E, sendo este o único motivo de conversa, quanto mais pensavam nele, mais deprimidos ficavam.
O padre de aldeia, que era pessoa de bons conselhos, preocupado com os seus paroquianos, decidiu agir em prol da verdade. Em vez da habitual homilia ou divagação por teorias filosóficas, aproveitou uma missa para perguntar se alguém tinha tido oportunidade de falar com algum dos três desconhecidos. Os pais da Madalena foram os mais surpreendidos quando a sua filha pôs o dedo no ar. Afinal, esclareceu ela, após o fim das 12 badaladas, enquanto toda a aldeia estava distraída a cochichar uns com os outros sobre o que tinham assistido, a Madalena tinha-se esgueirado e conseguira falar com os três, um de cada vez. E quando questionada, respondeu que não tinha dito nada antes porque ninguém lhe tinha perguntado e porque os nomes que eles lhe tinham dado eram muito estranhos: um chamava-se Poder, outro Impulso e o terceiro Felicidade.

E é esta a história que faz homens na minha aldeia. Eu próprio, se me chamam sábio, é por causa dela. 
- Mestre, quanto tempo demorou a compreendê-la?
Oh, compreendê-la é fácil. Difícil é justificá-la.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

A aldeia sem flores

Era uma vez uma cidade, escondida no vale de uma cordilheira de montanhas, a muitos meses de caminho da povoação mais próxima.
Certo dia, aconteceu algo inaudito, impensável até para alguns: apareceu um viajante. Não havia memória da última pessoa que tivesse chegado ou partido da cidade. Outros duvidavam que isso alguma vez tivesse acontecido.
Foi, por isso, recebido com grandes honrarias. O perfeito da cidade acolheu-o em sua casa e todos lhe ofereciam amizade e partilhavam a sua mesa para poderem ouvir as suas histórias em primeira mão.
Ao fim de poucos dias, quando se habituou à hospitalidade daquele povo, o recém-chegado finalmente percebeu porque achara aquela cidade tão estranha à primeira vista: não havia uma única flor na cidade ou nos campos. O seu olhar entristeceu-se mas com receio de ofender os seus bondosos anfitriões nada lhes disse.
Instalou-se como carpinteiro e em breve já dormia na sua própria casa.
Nos seus afazeres diários frequentemente suspirava “quem bem ficaria aqui um malmequer para me alegrar o dia”. Ou noutras vezes “ que saudades tenho das margaridas e dos amor-perfeitos”.
Os habitantes daquela pacata cidade não demoraram a notar que o forasteiro, embora falasse a sua língua, utilizava muitas palavras estranhas. E dessas palavras estranhas, havia uma mais repetida que todas as outras e que era acompanhada por longos suspiros e olhares perdidos no horizonte: “rosa”.
À medida que a amizade com o forasteiro crescia, finalmente ganharam coragem para questioná-lo sobre aquelas palavras estranhas que nunca tinham ouvido falar.
Respondeu-lhes: “Ah, as flores! Flores são como as ervas e as árvores dos vossos campos, mas de uma beleza indescritível e de um cheiro maravilhoso. De onde eu venho há flores por todo o lado e em todas as casas. É uma alegria entrar numa casa florida, ou passear num campo e não há coração que resista à oferta de uma rosa vermelha. Dão cor à nossa vida”
A partir daquele momento não houve uma única alma na cidade que não desejasse conhecer essas plantas tão especiais. Principalmente as raparigas. Passaram também a suspirar por flores e todas as noites lhe pediam que lhes descrevesse mais um pedacinho de cada flor, o seu aspecto, o seu cheiro, suplicando por fim que lhes repetisse novamente tudo sobre as rosas.
Aos poucos, todos os habitantes já falavam de flores como se sempre as tivessem cultivado nos jardins e já imitavam o seu amigo com expressões como: “que falta me fazem uns lírios aqui nesta varanda”
Passaram inclusivamente a celebrar o dia da flor entre as montanhas. Partilhavam ensinamentos entre todos sobre qual a melhor forma de semear e cultivar os diversos tipos de flores. Planeavam-se expedições que nunca saiam do papel em busca de sementes.
Passados muitos anos o forasteiro morreu. As expedições continuaram a ser planeadas, o dia da flor celebrado e os ensinamentos transmitidos. Os apaixonados continuaram a galantear as suas pretendidas com expressões como: “ és bela como uma rosa”, “os teus cabelos são como girassóis reluzentes ao sol”, “os teus olhos têm o encanto das violetas”. Os velhos continuaram a suspirar pelas flores como se verdadeiramente as tivessem conhecido, mas aos novos restava apenas o hábito e uma ténue curiosidade em conhecer tais plantas. Havia até quem começasse a duvidar que elas existiam e chamavam para si mesmos de patetas aqueles que acreditavam.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A mãe malvada

- Mestre, fiquei profundamente abalado com uma situação que assisti hoje de manhã. Uma mãe que ralhava com o filho, deu-lhe duas palmadas.
E ficaste abalado porque...
- Já lá vai o tempo em que os pais batiam nas crianças. Toda a gente sabe que a violência não é solução para nada.
E chegaste a essa conclusão através de...
- Mestre, simplesmente sei. Violência apenas traz mais violência...
...como o ódio, suponho...
- Precisamente!
Sim, presumo que tens razão. Violência gera violência e ódio gera ódio. Presumo então, que a criança também tenha batido na mãe em resposta?
- Quer dizer... não.
Então gritou e fez uma birra monumental?
-... hum... também não. Calou-se e ficou muito quieta. Mas tenho a certeza que vai guardar rancor à mãe por causa disso.
Naturalmente. Diz-me uma coisa, a tua mãe nunca te bateu?
- Sim, muitas vezes, mas isso foi antes destas teorias modernas sobre educação...
... portanto, hoje és um jovem ressentido com a tua mãe...
- É claro que não!
Tens a certeza? Afinal de contas ela bateu-te, e tu tinhas a certeza absoluta que aquela criança iria ressentir-se mais tarde da mãe por causa daquelas palmadas?
- Já percebi mestre.
Diz-me outra coisa. Tu viste a causa daquela cena?
Não.
Conheces algum dos dois?
- Também não.
Ficaste para ver como se relacionaram a partir dali?
- Não, mestre.
Portanto, a partir de uma cena isolada, presumiste que aquela era um mãe malvada, antiquada, a bater num filho. E pensas que bater numa criança é errado porque violência só traz violência. Agora responde-me, se violência só traz violência, como explicas que a criança se tenha calado logo a ter recebido as palmadas ou que tu, hoje em dia, não tenhas ressentimentos contra os teus pais, apesar deles te terem ralhado e dado algumas palmadas?
- É que eu levei palmadas porque mereci.
Ah!

O dilema

"Certa manhã, um ilustre advogado foi visitado por um indivíduo andrajoso. Conhecido pelo seu péssimo temperamento, ninguém estranhou a contida reprimenda que deu à sua secretária por ter permitido a entrada de uma pessoa no seu escritório sem aviso. Não se deteve para ouvir a resposta da pobre mulher.
Deixando a porta aberta, convidou o homem a sair, informando-o que não recebia ninguém sem marcação prévia e mergulhou novamente a sua atenção nos documentos que tinha em cima da mesa.
Mas o visitante suplicou:
- Por favor doutor, tem de me ouvir!
O advogado ficou surpreendido. Não tinha memória de alguma vez ter repetido uma ordem, por isso concedeu:
- Mas tem hora marcada? 
- Não.
- Então à saída fale com a minha secretária e faça uma marcação. Boa tarde!
Voltou a centrar a sua atenção para o trabalho, mas não conseguiu concentrar-se. Sem levantar a cabeça, olhou por cima dos óculos e vislumbrou um vulto que não se movera. 
- Por favor, tenha a bondade de se retirar. Como pode ver estou muito ocupado. - insistiu, irritado, o advogado.
- Dê-me só um instante, não tomo mais que um minuto do seu tempo.
De semblante grave, o advogado falou na direcção da porta:
- Anabela, por favor, atenda este senhor. Agora não tenho tempo.
Porém o homem disse:
- Mas é uma situação de vida ou morte, doutor! Da sua morte!
Com isto, o maltrapilho conseguiu finalmente a atenção do advogado e foi convidado a sentar-se.
- Caro senhor, explique-se! - exigiu o advogado.
- Há dois dias que ando à sua procura para o avisar: hoje, você iniciará uma viagem, o pneu do seu carro irá rebentar e terá um grave acidente. Faça o que fizer, não viaje hoje no seu carro.
Mas o advogado, fazendo um gesto de desprezo, retorquiu:
- Não tenho tempo para maluquices. Tenho muito que fazer. 
E tão silenciosamente como entrou, o indivíduo saiu, deixando o poderoso advogado a preparar-se para a viagem que tinha sido planeada há 2 dias."

- Mestre, este foi o dilema que consegui invocar: como reagir perante situações que desafiam as nossas crenças?

Um homem pragmático, dir-lhe-ia para ignorar os avisos por não acreditar em previsões ou futurologia.
Um homem supersticioso, dir-lhe-ia para não entrar num carro nesse dia.
Um homem sábio, aconselhá-lo-ia a agir com cautela, mas para não acreditar em futurologia. 
Embora a resposta seja mais ou menos óbvia, tentarei expor o meu raciocínio:
i) ninguém tem a capacidade de adivinhar o futuro, portanto, ou alguém lhe quer mal (real ou guerra psicológica), ou o mendigo é um louco.
Se o mendigo é louco, o aviso deve ser ignorado. Na impossibilidade de verificar a loucura, devemos atender que:
ii) há pessoas bondosas que se preocupam - o mendigo pode ter visto alguém mexer-lhe no carro, ou ter ouvido alguma conversa conspiratória;
iii) há pessoas maldosas - não é inteiramente descabido que por uma brincadeira macabra ou por intenção vil, alguém tenha sabotado os seus pneus;
iv) há pessoas ressentidas - o próprio mendigo (conscientemente) ou influenciado por terceiros (consciente ou inconscientemente), quer amedrontar o advogado;
v) há pessoas susceptíveis de criar inimizades. - pela história que contaste, sei que o advogado tem um mau temperamento, que é sempre fonte de atrito com outras pessoas. Ainda pela história, sei que o advogado é uma pessoa poderosa pelo facto de não ter  memória de alguma vez ter repetido uma ordem. Pessoas poderosas geram maiores inimizades que as outras, independentemente da sua personalidade.


Posto isto, qual seria a tua sugestão?


O discípulo pensou um bocado e sugeriu que o advogado dissesse à secretária:
- "Anabela, por favor, vá com o meu carro à oficina para analisarem os pneus, ver se estão em perfeitas condições de segurança. Quando estiver de regresso, ligue-me que eu desço logo de seguida."


Interessante! Concluíste que o problema apenas poderia estar nos pneus, ignorando as superstições, e conseguiste que ele não perdesse tempo. Garantiste igualmente que não haveria oportunidade de alguém sabotar novamente os pneus. Mas puseste em perigo a secretária sem garantia que o problema ficaria solucionado.

- Como, mestre?

Não podemos confiar que as pessoas consigam ler nas entrelinhas. Dada a natureza do seu chefe, a menos que lhe pedissem para conduzir muito devagar, ela iria o mais depressa possível, com risco de ser ela ter o acidente. Por outro lado, uma verificação de rotina não estaria atenta a sinais dissimulados de sabotagem.  

- Portanto, o advogado deveria dizer-lhe também para que fosse muito devagar e que na oficina procurassem por sabotagem.

Se não te importasses de preocupar a secretária e colocar-lhe incontáveis questões na cabeça sem resposta...

- Humm... nesse caso, que a secretária levasse o carro à oficina para trocar os pneus e fazer um check-up aos restantes componentes da roda e que tivesse a preocupação de não apanhar uma multa de excesso de velocidade.

Muito bem! Agiste em conformidade com o que ela esperaria do patrão e resolverias o problema momentâneo. Mas assim como saberias se de facto teria existido sabotagem?

- Deveria então dizer-lhe apenas: "Anabela, por favor, leve o meu carro à oficina e quando lá chegar deixe-me falar com eles. Evite apanhar qualquer multa de execesso de velocidade. Avise-me quando estiver de regresso que eu partirei no carro imediatamente." Por telefone o advogado deveria alterar a oficina para a possibilidade de sabotagem.

Melhor! A realidade é um fluxo infinito e constante de estímulos e hábitos, ações e reações. Quantos mais puderes identificar melhor poderás reagir. 

Isto é apenas aquilo que consigo explicar-te neste momento. Para que compreendesses inteiramente o meu raciocínio, exigiria que te explicasse por que motivo sei que:
- não é possível prever o futuro;
- há pessoas bondosas;
- a secretária não leria nas entrelinhas;

Contudo, perante o teu dilema, o que me passou verdadeiramente pela cabeça foi a seguinte questão: sabendo que este não é um incidente isolado, prefere continuar correr o risco tomando medidas que camuflam os sintomas, ou prefere resolver o problema curando a causa? Na realidade há um dilema, mas não aquele que tu achavas.