"Certa manhã, um ilustre advogado foi visitado por um indivíduo andrajoso. Conhecido pelo seu péssimo temperamento, ninguém estranhou a contida reprimenda que deu à sua secretária por ter permitido a entrada de uma pessoa no seu escritório sem aviso. Não se deteve para ouvir a resposta da pobre mulher.
Deixando a porta aberta, convidou o homem a sair, informando-o que não recebia ninguém sem marcação prévia e mergulhou novamente a sua atenção nos documentos que tinha em cima da mesa.
Mas o visitante suplicou:
- Por favor doutor, tem de me ouvir!
O advogado ficou surpreendido. Não tinha memória de alguma vez ter repetido uma ordem, por isso concedeu:
- Mas tem hora marcada?
- Não.
- Então à saída fale com a minha secretária e faça uma marcação. Boa tarde!
Voltou a centrar a sua atenção para o trabalho, mas não conseguiu concentrar-se. Sem levantar a cabeça, olhou por cima dos óculos e vislumbrou um vulto que não se movera.
- Por favor, tenha a bondade de se retirar. Como pode ver estou muito ocupado. - insistiu, irritado, o advogado.
- Dê-me só um instante, não tomo mais que um minuto do seu tempo.
De semblante grave, o advogado falou na direcção da porta:
- Anabela, por favor, atenda este senhor. Agora não tenho tempo.
Porém o homem disse:
- Mas é uma situação de vida ou morte, doutor! Da sua morte!
Com isto, o maltrapilho conseguiu finalmente a atenção do advogado e foi convidado a sentar-se.
- Caro senhor, explique-se! - exigiu o advogado.
- Há dois dias que ando à sua procura para o avisar: hoje, você iniciará uma viagem, o pneu do seu carro irá rebentar e terá um grave acidente. Faça o que fizer, não viaje hoje no seu carro.
Mas o advogado, fazendo um gesto de desprezo, retorquiu:
- Não tenho tempo para maluquices. Tenho muito que fazer.
E tão silenciosamente como entrou, o indivíduo saiu, deixando o poderoso advogado a preparar-se para a viagem que tinha sido planeada há 2 dias."
- Mestre, este foi o dilema que consegui invocar: como reagir perante situações que desafiam as nossas crenças?
Um homem pragmático, dir-lhe-ia para ignorar os avisos por não acreditar em previsões ou futurologia.
Um homem supersticioso, dir-lhe-ia para não entrar num carro nesse dia.
Um homem sábio, aconselhá-lo-ia a agir com cautela, mas para não acreditar em futurologia.
Embora a resposta seja mais ou menos óbvia, tentarei expor o meu raciocínio:
i) ninguém tem a capacidade de adivinhar o futuro, portanto, ou alguém lhe quer mal (real ou guerra psicológica), ou o mendigo é um louco.
Se o mendigo é louco, o aviso deve ser ignorado. Na impossibilidade de verificar a loucura, devemos atender que:
ii) há pessoas bondosas que se preocupam - o mendigo pode ter visto alguém mexer-lhe no carro, ou ter ouvido alguma conversa conspiratória;
iii) há pessoas maldosas - não é inteiramente descabido que por uma brincadeira macabra ou por intenção vil, alguém tenha sabotado os seus pneus;
iv) há pessoas ressentidas - o próprio mendigo (conscientemente) ou influenciado por terceiros (consciente ou inconscientemente), quer amedrontar o advogado;
v) há pessoas susceptíveis de criar inimizades. - pela história que contaste, sei que o advogado tem um mau temperamento, que é sempre fonte de atrito com outras pessoas. Ainda pela história, sei que o advogado é uma pessoa poderosa pelo facto de não ter memória de alguma vez ter repetido uma ordem. Pessoas poderosas geram maiores inimizades que as outras, independentemente da sua personalidade.
Posto isto, qual seria a tua sugestão?
O discípulo pensou um bocado e sugeriu que o advogado dissesse à secretária:
- "Anabela, por favor, vá com o meu carro à oficina para analisarem os pneus, ver se estão em perfeitas condições de segurança. Quando estiver de regresso, ligue-me que eu desço logo de seguida."
Interessante! Concluíste que o problema apenas poderia estar nos pneus, ignorando as superstições, e conseguiste que ele não perdesse tempo. Garantiste igualmente que não haveria oportunidade de alguém sabotar novamente os pneus. Mas puseste em perigo a secretária sem garantia que o problema ficaria solucionado.
- Como, mestre?
Não podemos confiar que as pessoas consigam ler nas entrelinhas. Dada a natureza do seu chefe, a menos que lhe pedissem para conduzir muito devagar, ela iria o mais depressa possível, com risco de ser ela ter o acidente. Por outro lado, uma verificação de rotina não estaria atenta a sinais dissimulados de sabotagem.
- Portanto, o advogado deveria dizer-lhe também para que fosse muito devagar e que na oficina procurassem por sabotagem.
Se não te importasses de preocupar a secretária e colocar-lhe incontáveis questões na cabeça sem resposta...
- Humm... nesse caso, que a secretária levasse o carro à oficina para trocar os pneus e fazer um check-up aos restantes componentes da roda e que tivesse a preocupação de não apanhar uma multa de excesso de velocidade.
Muito bem! Agiste em conformidade com o que ela esperaria do patrão e resolverias o problema momentâneo. Mas assim como saberias se de facto teria existido sabotagem?
- Deveria então dizer-lhe apenas: "Anabela, por favor, leve o meu carro à oficina e quando lá chegar deixe-me falar com eles. Evite apanhar qualquer multa de execesso de velocidade. Avise-me quando estiver de regresso que eu partirei no carro imediatamente." Por telefone o advogado deveria alterar a oficina para a possibilidade de sabotagem.
Melhor! A realidade é um fluxo infinito e constante de estímulos e hábitos, ações e reações. Quantos mais puderes identificar melhor poderás reagir.
Isto é apenas aquilo que consigo explicar-te neste momento. Para que compreendesses inteiramente o meu raciocínio, exigiria que te explicasse por que motivo sei que:
- não é possível prever o futuro;
- há pessoas bondosas;
- a secretária não leria nas entrelinhas;
Contudo, perante o teu dilema, o que me passou verdadeiramente pela cabeça foi a seguinte questão: sabendo que este não é um incidente isolado, prefere continuar correr o risco tomando medidas que camuflam os sintomas, ou prefere resolver o problema curando a causa? Na realidade há um dilema, mas não aquele que tu achavas.