Vem cá e senta-te ao pé de mim. Na minha terra há uma história que é contada a todos jovens no dia que fazem 18 anos. E hoje gostaria de partilhá-la contigo.
- Mas mestre, já tenho mais de 18 anos!
Então não terás desculpa para demorares mais que 6 meses a compreendê-la. Nunca é contada antes porque como jamais alguém ouviu a história antes dos 18 anos, todos se recusam quebrar essa regra. E nunca é contada depois, porque não há nada que um jovem daquela terra deseje mais ardentemente para o seu 18º aniversário que ouvi-la. Por isso é chamada "A história dos 18"
"Numa noite de tempestade, numa estalagem à beira da estrada, encontraram-se 3 viajantes. Quem os visse diria que não se conheciam pois cada um se sentara a um canto da sala. E eram tão diferentes entre si quanto se é possível imaginar. O primeiro a chegar vestia um fato escuro, de corte elegante, luvas e usava uma bengala como acessório. Tinha um fino bigode aparado e muitas moedas de ouro no bolso. O segundo, era careca, gordo e desajeitado, parecia ter dormido vestido e tinha um tique nervoso, que o levava a olhar para o relógio duas a três vezes por minuto. O terceiro era um mistério. Nada trazia além de uma túnica branca que lhe cobria o corpo até aos pés. Tinha um rosto jovem, mas podia ser simplesmente impressão causada pelo permanente sorriso e olhar alienado.
Assim que o relógio começou a bater as 12 badaladas da meia-noite, levantaram-se os 3 ao mesmo tempo e rapidamente se juntaram ao redor de uma mesa. A conversa prolongou-se até à última badalada da meia noite. Então, do mesmo modo repentino com que se juntaram, cada um se dirigiu ao seu quarto e não se tornaram a ver. O estalajadeiro jurou pela alma da sua mãe que todos saíram a horas diferentes na manhã seguinte. E não fosse o caso de haver um empregado de balcão que confirmou todos os pontos e virgulas da história, ninguém o teria levado a sério dada a sua propensão para um copito ou dois a mais.
Após o falatório inicial, típico das pequenas terras onde um pequeno acontecimento é tema de conversa durante dias, o assunto caiu no esquecimento.
Meses depois, assolou àquela aldeia, uma tempestade ainda pior, e o estalajadeiro teve uma sensação de dejá-vu quando a porta se abriu e entrou um indivíduo com bigode, fato e bengala, seguido dos outros dois, continuando a agir como se não se conhecessem. Assim que o relógio começou a bater as 12 badaladas da meia-noite, o ritual repetiu-se. Ninguém conseguiu ouvir o que eles diziam, mas as suas expressões eram de intensa alegria e amizade. À última badalada, cada um voltou para o seu canto.
A notícia espalhou-se como um rastilho e, ao final da manhã, já toda a aldeia tinha tido conhecimento. Desta vez a febre durou algumas semanas. Foram feitas incontáveis conjecturas e teorias. Mas, de entre todos os disparates que se disseram, houve uma pergunta que sobressaiu: voltariam os estranhos na próxima tempestade?
Começou, então, um ritual estranho naquela aldeia. A estalagem passou a ter mais movimento quando chovia, a encher-se sempre que trovejava e a abarrotar se a trovoada fosse de noite. Mas na realidade passaram-se muitos meses até uma verdadeira tempestade prometer voltar a cruzar a meia-noite. E quando ela finalmente chegou, só faltaram ao encontro os doentes e acamados.
A algazarra foi épica durante o tempo que demorou a espera, e também era grande o queixume provocado pelo desconforto que costuma existir quando está gente a mais num espaço confinado. Ainda assim, apesar de antecedido por um grande frémito, houve um silêncio sepulcral quando pela porta entrou um cavalheiro de bengala.
Ninguém ficou desiludido naquela noite. Tal como lhes fora contado, o estranho ritual aconteceu diante dos seus olhos, e todos juraram nunca ter visto coisa assim...
Passado o frenesim do acontecimento, começou a surgir por toda a aldeia um certo mal estar por ninguém compreender o que se tinha passado. Pior ficaram quando se começaram a recriminar por ninguém se ter lembrado de falar com eles. E, sendo este o único motivo de conversa, quanto mais pensavam nele, mais deprimidos ficavam.
O padre de aldeia, que era pessoa de bons conselhos, preocupado com os seus paroquianos, decidiu agir em prol da verdade. Em vez da habitual homilia ou divagação por teorias filosóficas, aproveitou uma missa para perguntar se alguém tinha tido oportunidade de falar com algum dos três desconhecidos. Os pais da Madalena foram os mais surpreendidos quando a sua filha pôs o dedo no ar. Afinal, esclareceu ela, após o fim das 12 badaladas, enquanto toda a aldeia estava distraída a cochichar uns com os outros sobre o que tinham assistido, a Madalena tinha-se esgueirado e conseguira falar com os três, um de cada vez. E quando questionada, respondeu que não tinha dito nada antes porque ninguém lhe tinha perguntado e porque os nomes que eles lhe tinham dado eram muito estranhos: um chamava-se Poder, outro Impulso e o terceiro Felicidade.
E é esta a história que faz homens na minha aldeia. Eu próprio, se me chamam sábio, é por causa dela.
- Mestre, quanto tempo demorou a compreendê-la?
Oh, compreendê-la é fácil. Difícil é justificá-la.
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